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“Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação” é um daqueles livros de riqueza extraordinária. Ao abordar as configurações e reconfigurações do mais importante quilombo da história brasileira, Silvia Lara revisita a documentação com rigor, não se furta de fazer questões incômodas, questiona interpretações consolidadas, explora os nexos coloniais em toda sua complexidade, situa a política (de guerra e paz, mas sobretudo de guerra) portuguesa contra comunidades de fugitivos à luz da política indigenista, pensa Palmares e Cucaú à luz da cultura política centro-africana, traz elementos sobre o destino de palmaristas após 1694-1695, confere destaque ao parentesco e às linhagens, propõe o desafio de realmente refletir sobre o (frustrado) tratado de paz de 1678, redimensionando as ações (e motivações) de Gana Zumba. Em relação ao tratado, Lara analisa-o sem ceder a paixonites e simplificações políticas, tampouco a dualismos e oposições rígidas. À luz de eventos históricos anteriores, nas Américas e na África Central, tenta efetivamente compreender as causas e o contexto do tratado, bem como as implicações da recusa de lideranças como Zumbi em relação aos arranjos propostos. Nesse sentido, avança bastante em possíveis conexões com outros casos nas Américas, particularmente no que diz respeito aos tratados de paz, firmados em períodos posteriores, entre maroons (quilombolas) e poderes coloniais no Suriname e na Jamaica. O livro resulta de pesquisa de longa duração, cujos resultados iniciais foram expostos em um trabalho de titularidade, apresentado 12 anos antes na Unicamp. Nesses tempos de análises delivery e de “reflexões” supostamente críticas, expressas com limite de caracteres, de pronto surge uma lição: o tempo da pesquisa e da escrita não podem se conformar totalmente a imediatismos. Como bem coloca a autora, trata-se de um livro sobre o ofício de historiador(a). Lara revisita a documentação setecentista com minúcia. Efetivamente, apresenta muitas descobertas, resultantes não apenas de achados, mas também das perguntas feitas (e esse é um dos problemas de explicações prontas: muitas perguntas deixam de ser feitas). Lara analisa, pondera e critica as narrativas dominantes sobre Palmares, em geral escritas por homens, como Nina Rodrigues, Édison Carneiro e Décio Freitas. No livro, fica evidente que muitas interpretações – Flávio Gomes é uma das poucas exceções – baseiam-se mais em pressupostos e menos na documentação. Se, em muitos momentos, a autora dá verdadeiras chapuletadas (com luva de pelica) em historiadores, isso não se faz sem uma boa dose de generosidade: os méritos de análises precedentes, mesmo daquelas que remontam ao início do século XX, são reconhecidos e debatidos, de modo equilibrado e franco. Como deve ser. De quebra, o livro tem anexos preciosos. Em paralelo, a autora lançou um site, no qual há muito material sobre Palmares. O site pode ser acessado aqui. Imagino que o livro possa despertar debates e oxalá possa ser objeto mais de recensões qualificadas (veja-se, por exemplo, a resenha de John Thornton, publicada em Afro-Ásia) do que alvo de gritarias ecoadas por dogmatismos. Não sou historiador, tampouco especialista. De todo modo, foi uma leitura que trouxe aprendizados do início ao fim, despertou a curiosidade e serviu de inspiração: Barriga não acabou! Três trechos, dois dos quais sobre o que a autora chama, em debate com autores como Mintz e Price e John Thornton, de “sintaxe centro-africana”: “A sintaxe política centro-africana ecoa na história dos Palmares de vários modos. Diferentes entre si, por pertencerem provavelmente a vários estados ou ocuparam posições sociais diversas, os centro-africanos transportados da África para o Brasil – e para Pernambuco – compartilhavam uma mesma cultura política. Haviam sido escravizados segundo mecanismos variados, mas articulados, e foram obrigados a se transformar igualmente em escravos no Novo Mundo. A experiência política que havia confirmado suas vidas até então não ficou em terra, do outro lado do Atlântico. Ela orientou seus comportamentos e escolhas durante a vida como cativos e forjou o modo como reagiram à escravidão e se organizaram para viver e sobreviver fora dela. (p. 229)”
“Na maior parte das interpretações, o exame mais cuidadoso das fontes cede lugar a inferências que operam para confirmar um sentido geral atribuído à história dos Palmares. Em geral, a intepretação se impõe aos acontecimentos. O acordo de paz e Cucaú recebem atenção apenas para marcar certa inflexão na continuidade de uma história linear, cujo significado está dado de antemão e que, a partir de então, entraria no seu apogeu. De outro lado, a narrativa é presidida por um jogo de opostos que serve como explicação, sem que a natureza das relações entre os que foram para Cucaú ou se internaram nas matas, e entre eles e as autoridades coloniais, seja investigada. (p. 264)” “eram homens e mulheres inspirados por uma cultura política que fazia parte do mundo de onde eles, seus parentes e antepassados, tinham sido tirados à força. Majoritariamente centro-africanos, falantes do quimbundo, haviam aprendido a lidar com o domínio senhorial e colonial na outra margem do Atlântico e certamente usaram esse conhecimento para enfrentar a escravidão nas casas e nos engenhos pernambucanos. E também para fugir. A vida que construíram nos palmares de Pernambuco e o modo como lutaram negociaram para defendê-la foram desenhados por ideias e valores que haviam trazido consigo ou aprendido com seus pais” (p. 377)
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